Adoração na Teologia do Antigo Testamento

Adoração

A adoração parece ser tão antiga quanto a raça humana. Os primeiros capítulos de Gênesis narram sacrifícios oferecidos por Caim, Abel e Noé. Os sacrifícios de Caim e Abel provavelmente foram resposta de gratidão a Deus (Gn 4:3,4). O de Noé, uma oferta a Deus por salvá-lo (Gn 8:20-22). Esses dois motivos – gratidão pela bênção e salvação – continuaram determinando a adoração até o presente.

Adoração é um fenômeno universal. Isso tem sido confirmado pela história das religiões. O ser humano, em virtude de sua humanidade, é convidado a louvar pelo próprio processo de viver: ele não pode levar uma vida plenamente humana sem atos de celebração.

G. Henton Davies, professor de Antigo Testamento e Diretor da Regents Park College, falecido durante uma pregação em 1992, disse que adoração é homenagem – a atitude e a atividade que objetiva reconhecer e descrever o valor da pessoa ou coisa, à qual a homenagem ou adoração é prestada. “Por isso, adoração é sinônimo de toda uma vida reverente, englobando devoção e liturgia.

Em inglês a palavra “adoração” – “worship” – vem da palavra “valor”, e significa o reconhecimento, pelo homem finito, do valor infinito de Deus, e também apresentação estética ou expressão dramática desse reconhecimento, por atos simbólicos, atitudes e palavras. O propósito da adoração é glorificar a Deus.

O conceito de adoração dos salmistas era teocêntrico, não antropocêntrico. Sustentavam que nada na terra era digno se não estivesse na relação apropriada com o Criador do universo, o Doador da vida, Mestre, Juiz e Salvador.

Adorar é atribuir o maior valor a Deus. Se alguém adora a Deus por medo do inferno ou pela esperança do céu, confere ao inferno ou ao céu maior valor do que o valor a Deus, e assim eles se tornam objeto da adoração.

A palavra inglesa traduzida por “adoração” – “worship” – tem uma ênfase um pouco diferente das palavras do AT, que significam “adoração”. Ela dá ênfase a um juízo de valor por parte do adorador, característico da interiorização de idéias ocidental. Os termos hebraicos descrevem uma ação ao Santo. O AT frequentemente chama a Deus de “o Santo de Israel” e afirma que Ele está “com” ou “no meio do” seu povo.

“Santo” – qadosh – destaca que Deus é outro, transcendente, inacessível, misterioso, inatingível. Mas Ele é chamado “o Santo de Israel no meio (qereb) de ti” (Is 12:6; Os 11:9). Estar na presença de Deus era uma experiência tremenda, até aterradora. Ela despertava a consciência do pecado (Is 6:5) e o chamado para ter uma vida separada para Deus (Lv 19:2). A esperança de Israel de receber perdão e bênção, individual e coletiva, estava em Deus (Is 41:14; 54:5).

Três palavras hebraicas são traduzidas por “adoração” em nossas versões:
• shahah – “inclinar-se”, “prostrar-se”
• ‘abad – “servir”
• sagad – “inclinar-se”

‘Abad significa “trabalhar”, “atuar como escravo” em relação ao dono. É um termo aplicado ao escravo caseiro e ao súdito, ou vassalo, de um suserano. Entretanto, a ênfase não é tanto na condição servil do adorador como na função de executar a vontade do senhor. O vassalo habita a casa ou o reino do senhor. No contexto de adoração, a palavra se refere à condição humilde e ao desempenho fiel do trabalho dado ao adorador.

O termo hebraico ‘abôdâ significa “serviço” ou “culto”. O AT usa a palavra para referir-se ao serviço ao rei (I Cr 26:30), a Deus (Ex 3:12; 4:23; 12:25,27; Dt 6:13; Js 22:27) ou do templo (Ez 44:14). Os termos “servir” e “serviço” podem ter sentido político. Servir a Deus é uma conduta que “exclui a escravidão a governos humanos ou a sujeição ao poder dos deuses”.

Nos Salmos, o convite a servir ao Senhor é uma exortação a juntar-se a outros na formação de uma congregação, como povo de YHWH. Pode ser chamado de adoração porque é dirigida a Deus. O Salmo 100, por exemplo, pertence a uma época em que os homens se reúnem publicamente para reconhecer o poder ao qual submetem sua vida. Significa optar por uma estrutura de poder determinante, razão pela qual esse devia ser o ato social mais importante que alguém poderia tomar parte.

Ao contrário de seus vizinhos, Israel não via a adoração, ou “serviço”, como meio de induzir, coagir ou influenciar Deus a lhes dar algo que de outro modo não daria. A adoração no AT não era ocultismo, que objetiva conquistar a vontade dos deuses para o adorador. Não havia magia no culto no AT.

Adoração no AT é ‘abôday, e sempre que alguém aspira de algum modo “exercer poder” sobre YHWH, afetá-lo ou influenciá-lo por meio de instituições de culto, a ‘abôda é destruída.

A palavra hebraica mais traduzida como “adoração”, é sahah, “inclinar-se”, “prostrar-se”. Ela é comparável a outras palavras semíticas equivalentes a adoração. É algo que se faz, sinta-se ou não. “Servir” e “adorar” aparecem frequentemente juntos. “Servir” refere-se a fazer a vontade de Deus nas questões humanas. “Adorar” tem relação mais próxima com o ritual de culto.

De acordo com o AT, adoração é servir, fazer a obra e a vontade de Deus. É prostrar-se perante Deus publicamente. É compreender e reconhecer o infinito valor de YHWH.

A história da adoração no AT
No período dos patriarcas a adoração era simples, individual e periódica. Era feita ao pé das montanhas, riachos, rochas (Betel) ou árvores (carvalho de Moré), onde quer que Deus aparecesse ao adorador. A adoração não tinha mediador, nem ídolo, nem tempos determinados.
Em nenhum lugar vemos os patriarcas possuindo ou adorando ídolos. Nada se diz, por exemplo, sobre a adoração de José e sua família. José diz que Deus – Elohim – o enviou ao Egito para preservar a vida ou um remanescente, e seus irmãos se referem ao “Deus de teu pai”.

A adoração no período mosaico começa com a teofania no arbusto em fogo e com o chamado de Moisés para conduzir Israel para fora do Egito (Ex 3:12,18; 4:23; 5:1,3). A adoração de YHWH é parte do objetivo do êxodo: “Depois de haveres tirado o povo do Egito, servireis (‘abad) a Deus neste monte” (Ex 3:12).

Épocas da adoração
Uma rápida passagem pela breve história da adoração no AT revela as mudanças que ocorreram.

A Páscoa é ligada à festa dos Pães sem Fermento e é um evento comunitário que deve ser realizado no lugar central de culto. O sacrifício pascal (Dt 16:7) deve ser cozido. Ex 12:9 traz estipulações de que a carne não deve ser comida crua, mas assada. O nome da festa do outono é alterado em Dt 16:13 de “Colheita” para “Tabernáculos”. É evidente que a Páscoa não foi observada regularmente durante boa parte da história de Israel.

A guarda do sábado remonta a Moisés. Esse descanso tem como propósito promover uma devoção mais profunda a Deus. Sua observância não exigia sacrifício, mediador nem presença em um lugar sagrado. Na época de Ezequiel, a guarda do sábado se tornara uma prova de ortodoxia ou um sinal de aliança. Ex 31:12-17 faz do sábado o sinal da aliança perpétua entre YHWH e Israel.

A idéia do descanso divino no sétimo dia não deve ser entendida como uma referência a uma passividade letárgica. O sétimo dia não exige a abstenção da atividade de Deus; não só o Seu trabalho, mas também Seu descanso transfigura-se em um ato de presença, que é a base de toda a adoração.

Os lugares da adoração
No AT um lugar era santo porque Deus aparecera ali. Ele apareceu a Abraão no carvalho de Moré, em Siquém, e Abraão edificou ali um altar (Gn 12:6,7) e outro em Betel (Gn 12:8). Em Berseba, Deus apareceu a Isaque, e este levantou ali um altar (Gn 26:23-25). Apareceu a Jacó em Betel, e Jacó erigiu uma pedra para marcar o lugar da sua visão. Chamou a pedra de mazzebâ, “coluna”, e disse que seria a casa de Deus (Gn 28:18-22). Deus apareceu a Moisés no Sinai (Ex 3) e a José, em Gilgal, perto de Jericó (Js 5:13-15). Estes e outros lugares em que Deus apareceu tornaram-se “lugares santos” em Israel. Em princípio esses lugares santos não pareciam ser sofisticados e não eram dirigidos por sacerdotes.

Além desses altares construídos pelos patriarcas, a Palestina estava cheia de altares, pedras sagradas, colunas e árvores que os cananeus tinham erigido e/ou plantado. A maioria desses altares ficava no alto de montes, chamados “lugares altos” (bamôt). Israel recebeu a ordem de destruir esses lugares de adoração quando entrasse na terra (Nm 33:52; Dt 12:2,3). Em vez de fazê-lo, Israel com freqüência se esqueceu de YHWH e serviu aos baals e aserás (Jeremias refere-se a Aserá quando menciona a "rainha dos céus" nos capítulos 7 e 44. Deusa da fertilidade, do amor e da guerra. Jz 2:12; 3:7; 6:25,26,30; 8:33; 10:6; 17:4-6; 18:14; Js 4:9).

Siquém – O centro histórico e religioso mais expressivo no antigo Israel, não foi Jerusalém, mas Siquém. O período em que foi mais forte, entre 1800 e 1100 a.C., abrange tanto o período patriarcal como o êxodo (Gn 12:1-6; 33:18-20,34; 25-31; Js 24:32; At 7:16). Na época dos juízes, por volta de 1100 a.C., parece que cananeus controlavam Siquém. Pode-se ver a influência cananéia na cidade pelo templo consagrado a Baal-Berite (Jz 9:4). Siquém não é mencionada no AT durante o período da monarquia única. Porém, quando Salomão morreu, “todo Israel” foi para Siquém para fazer de Jeroboão rei. Quando Roboão, filho sucessor de Salomão, seguiu a má sugestão dos seus conselheiros jovens, Jeroboão estabeleceu seu próprio reino em Siquém, levando consigo dez das doze tribos de Israel (I Rs 12:25). Ele mudou o calendário cultual de Israel, designou dois novos centros de adoração (Dã e Betel) e consagrou sacerdotes para os lugares altos (I Rs 12:26-33). Depois do exílio, Siquém viu ressurgir sua importância como lugar de culto.

Siló – Parece ter sido o centro religioso das tribos de Israel e sede do tabernáculo após a conquista inicial.

Jerusalém – Sua história e importância na adoração em Israel são longas e conhecidas. A cidade tornou-se símbolo teológico do reino universal de Deus. No AT há um vínculo entre as idéias de paz (shalom), e retidão (tsedeq) com Jerusalém (Sl 72:1,3,7; 122:6-8; Is 1:21,26; 28:16). A cidade passou a ter um significado incomum depois que Davi a escolheu para ser sua cidade e capital do reino unido. Os profetas a identificaram como a futura cidade da paz, e seu governante vindouro, como o príncipe da paz e da retidão (Is 9:7; 16:4-9; 54:10,14; Jr 29:10,11; Ez 37:24-26; Mq 5:5). No AT, Jerusalém é chamada centro do mundo (Ez 5:5,6; 38:12), cidade edificada sobre um monte ou montanha (Is 2:1-5; Ez 40:1,2;Mq 4:1-4) e luz do mundo (Is 60:1-7). Existe uma cidade de Deus, invisível, espiritual, que não depende de lugar ou tempo, que representa o ideal de Deus para a sociedade, para a vida ordenada e obediente do ser humano.

O lugar de adoração mudava periodicamente no AT. Houve épocas em que Israel tinha apenas um lugar legítimo onde oferecer sacrifícios – o templo de Jerusalém. Antes de se completar o AT, a cidade já se tornara o símbolo transcendente da presença de Deus. As épocas de adoração também mudavam. No princípio a adoração era esporádica. Perto do fim do AT, a adoração já estava muito bem estruturada em termos de épocas e lugares.

A circuncisão e o batismo
A circuncisão era um ato religioso no AT. Esse costume veterotestamentário de circuncidar meninos já foi muitas vezes citados como base para o batismo de crianças pela igreja, porém não há evidências favoráveis no NT de que o batismo infantil tenha sido praticado no primeiro século d.C. A.H. Strong disse: “O batismo de crianças não foi instituído por Cristo, nem por seus apóstolos. Mesmo mais tarde, teólogos como Tertuliano se opunham a ele.”

O batismo infantil era praticado já no segundo século e foi defendido com muita força pelos reformadores. A Igreja Católica Romana via o batismo infantil no contexto da sua doutrina do pecado original. Se o pecado é hereditário, os bebês já nascem pecadores e precisam de “perdão” e “regeneração”. O batismo se tornou o sacramento da graça para crianças e adultos.

Karl Barth disse que o ensino da igreja sobre o batismo infantil não tem em si apenas uma trinca, mas um buraco:

“A prática do batismo que se encontra em uso com base no ensino predominante é arbitrária e despótica. Nem pela exegese nem a partir da natureza do caso pode-se determinar que a pessoa a ser batizada pode ser um mero instrumento passivo. Pelo contrário, pode-se provar pela exegese e a partir da natureza do caso que, nesse ato, o batizado é um participante ativo, que pode estar em qualquer estágio da sua vida, menos na infância.”
Barth assinalou que, no NT, “ninguém é levado para ser batizado; todos vem para o batismo”.

G.A.F. Knight tenta justificar o batismo infantil pelo uso da tipologia. Lembrando a comparação que Paulo faz da travessia do mar Vermelho com o batismo (I Co 10:1,2). Knight disse que Paulo, usando o método tipológico dos rabinos, interpreta a ação de Deus na vida de Israel em termos do que ele sabia ser a ação recente de Deus em Cristo. H.H. Rowley discordou da analogia de Knight. Ele disse que, nessa passagem, Paulo estava na verdade preocupado em destacar o contraste entre a travessia do mar e o batismo, e em insistir para que o exemplo dos israelitas que saíram do Egito não fosse seguido pela igreja, pois foi um exemplo de desobediência.
Sacerdotes e adoradores expressavam sua adoração com gestos e posturas físicas. Prostravam-se até o chão em atitude humilde e erguiam as mãos para receber a bênção pela qual tinham orado. “A adoração era cheia de cores, sons e movimento”. O cheiro de sangue e carne queimada com freqüência acompanhava a adoração no templo. A música consistia em boa parte do retinir de címbalos e do som de trombetas e chifres. Havia cânticos responsivos, acompanhados de música de cordas, provavelmente, bastante melodiosa.

A adoração dos israelitas às vezes era dramática. Durante a festa do outono viviam em tendas. Na Páscoa, colocavam sangue nos batentes das portas. Marchavam em torno de Jerusalém e contavam suas torres (Sl 48), e amarravam ramos festivos nos chifres do altar (Sl 118:27). Dançavam (Ex 32:19; Jz 21:21; II Sm 6:14; Sl 87:7; 149:3; 150:4), acendiam velas (I Rs 7:49) e derramavam água (I Sm 7:6). A maioria das formas veterotestamentárias de adoração não durava muito tempo. Depois do ano 70 d.C., a adoração israelita teve de ser expressa sem sacrifício, altar e sacerdotes. Herbert disse que esse fato sugere que a adoração, de certa forma, não era permanente nem adequada para atender todas as necessidades de culto do ser humano.

Os profetas reconheceram que Deus exigia obediência e não meras ofertas rotineiras, externas, desvinculadas, ofertas de animais sacrificiais (I Sm 15:22; Os 6:6; Mq 6:8). A palavra mais sublime sobre os sacrifícios no AT relaciona-se com o sacrifício futuro do Servo sofredor, um homem sem pecado. Trata-se de um sacrifício voluntário, vicário, por Israel e pelas nações, a ser oferecido pelo sofrimento, morte e “ressurreição” do servo.
O sistema sacrificial do AT acabou no ano 70 d.C., quando o templo foi destruído. O NT declara que a morte de Jesus na cruz foi o sacrifício definitivo, que cumpriu os sacrifícios do AT (Hb 9:23-10:14). A adoração no templo no AT era exclusivista. Certos grupos não podiam entrar. Pessoas desfiguradas, filhos ilegítimos, moabitas, amonitas não podiam entrar no lugar de adoração (Dt 23:1-3). Leprosos ou impuros não podiam entrar no acampamento (Nm 5:1-4). Isaías 56:3-8 mostra que, no futuro, estrangeiros, eunucos e excluídos teriam livre acesso ao templo, pois ele se tornaria uma casa de oração para todos os povos.

Ao dizer que a adoração veterotestamentária não era adequada para satisfazer todas as necessidades humanas de culto, não estamos dizendo que a adoração no AT não tinha valor. O AT diz ao homem que o bem supremo é adorar a Deus. A adoração no AT é um encontro sagrado em que Deus concede perdão, consolo e direção e em que o adorador responde com louvor, frequentemente recordando os grandes atos redentores de Deus. A vida de adoração foi resgatada da fuga para outro mundo e do êxtase irresponsável pela repetida insistência na obediência moral.

Na adoração, Israel visualizava a origem da sua existência o destino para o qual fora chamado; porque, na adoração, Israel ouvia a palavra de perdão; porque, por trás da sua vida e nela havia um amor fundamental que a tudo abrange e julga com ira, mas é misericordioso.

Em sua adoração, Israel constatava que era livre. Nos hinos, lamentos, confissões, ações de graças, cânticos de confiança, bênçãos e maldições do AT, temos as palavras de pessoas libertadas, resgatadas. No santuário, essas pessoas se sentem livres para falar, livres para orar, livres para confessar e revelar os terríveis segredos do coração, livres para cantar, louvar e adorar. Nessa última liberdade, elas são realmente livres, pois foram libertas do egocentrismo e da obsessão consigo mesmas, que derrubam as pessoas e as tornam triviais e críticas.

Israel é liberto ao reconhecer seu relacionamento com um Deus transcendente, que não pode ser obrigado pelas obras de mãos humanas, nem pelos sofismas dos pensamentos humanos. O verdadeiro Israel é livre na única liberdade disponível ao ser humano.

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Teologia do Antigo Testamento – História, Método e Mensagem – Smith, Ralph L. – Vida Nova.