Estudo de Salmos

AUTORIA

A descoberta dos chamados Rolos do Mar Morto, nas cavernas do monte Qunram, é considerada a maior descoberta arqueológica do século XX, e deu origem a uma série de pesquisas e relatórios científicos que colaboram, até hoje, para melhor compreensão dos manuscritos bíblicos, além de atestar a autenticidade de muitas cópias historicamente mais recentes.

A primeira coletânea pré-exílica de salmos foi organizada na época de Davi, quando a liturgia do culto a Javé (Yahweh o nome santo e impronunciável de Deus, em hebraico *** transliterado muitas vezes em Jeová, Iavé ou Adonai – o Eterno – é em geral traduzido por Senhor) começava a tomar forma.

Os primeiros salmos a serem agrupados, e que mais tarde dariam origem ao Saltério, foram deno- minados “Orações de Davi, filho de Jessé” (72.20). Outros foram compostos durante o exílio. Contu- do, foi durante o reinado do seu filho Salomão (um dos reis considerados “davídicos”) e o exercício do serviço litúrgico e religioso no primeiro templo, que os salmos, definitivamente, passaram a fazer parte da tradição judaica. Assim, o livro dos salmos é a compilação de várias coletâneas da fina obra literária bíblico-canônica-judaica (poemas, hinos e cânticos espirituais) e representa a etapa final de um processo que demandou séculos de vívida história. Foram os mestres e servos pós-exílicos do templo, entretanto, que completaram e concluíram a coletânea final de 150 salmos (número com o qual concordam a Septuaginta e o Texto Hebraico, ainda que cheguem a essa cifra de modo dife- rente), ao final do séc. III a.C.

As expressões “Salmos” e “Saltério” provêm da Septuaginta (a primeira e mais notável tradução grega do AT, elaborada por um grupo de eruditos de Alexandria, por volta do ano 285 a.C.) e, a princí- pio, referiam-se aos instrumentos de cordas usados nas liturgias da época (harpa, lira, alaúde etc…). Mais tarde, passaram a designar não apenas os instrumentos mas, igualmente, os cânticos que acompanhavam os cultos. Os títulos hebraicos originais tehilim (louvores) e tephillot (orações) deram origem ao termo que usamos hoje: Salmos. É costume, nas sinagogas em todo o mundo, recitar uma oração anterior e em preparação reverente à leitura devocional dos salmos, cujo primeiro parágrafo aqui transliteramos: lehi ratson milefanêcha Adonai Elohênu velohê avotênu, habocher bedavid avdo uvezar’o acharav, vehabocher beshirot vetishbachot, shetefen berachamim el keriat mizmorê tehilim sheecrá keilu amaram David hamélech alav hasshalom beatsmo, zechuto toguen alênu. “Ó Eterno, nosso Deus e Deus de nossos pais, que com amor acolheste Teu servo David e seus descendentes, e que Te deleitas com cânticos e louvores, possam ser de Teu agrado os Salmos que vou pronunciar. Considera-os como se pelo próprio rei David – de abençoada memória – tivessem sido recitados.”

De acordo com os títulos (parte integrante do texto bíblico que, na Bíblia King James e, posterior- mente, em outras traduções, aparece como subtítulo ou junto ao primeiro versículo), Davi foi autor ou fonte de inspiração de 73 salmos. O próprio Senhor Jesus Cristo afirmou categoricamente a validade do título do Salmo 110 e a autoria de Davi (Mc 12.36).

Devido à fraseologia hebraica empregada nos manuscritos, que significa, de modo geral, “pertencente a”, surge uma dificuldade na precisão das autorias, pois essa expressão pode ser igualmente interpretada no sentido de “concernente a”, “para uso de”, ou ainda “dedicado a”. Portanto, o nome pode referir-se ao título de uma coleção de salmos que havia sido reunida em torno de determinada personagem (como “de Asafe” ou “dos coraítas”, por exemplo). Contudo, especialmente depois dos estudos sobre os Rolos do Mar Morto, não há dúvida entre os mais renomados biblistas, de que houve um Saltério composto por esse notável compositor, músico e cantor; coletânea que pode ter incluído hinos e escritos a respeito de alguns dos reis “davídicos” posteriores, ou ainda salmos escritos “à moda de Davi”. O nome “Davi” também é usado no Saltério, em sua forma original, como substantivo coletivo, a fim de representar os reis de sua dinastia. Nos livros hebraicos de orações, a memória de Davi é tradicionalmente reverenciada como “o doce cantor de Israel”, cujos Salmos manifestam sua exaltação, esperanças, tristeza e alegria, temor e angústias, perseverança e amor a Am Israel, o Povo de Israel, sempre invocando a ajuda do Eterno (Adonai) e, mesmo nos momentos mais difíceis, manifestando sua confiança absoluta no socorro dEle!”

Sendo assim, Asafe foi autor de 12 salmos, os filhos de Corá compuseram 11, Salomão foi autor de dois, e Moisés e Etã foram autores de um salmo cada. Cerca de 50 salmos não têm autor definido, embora a Septuaginta apresente Ageu e Zacarias como autores de cinco salmos.

Os mais recentes relatórios baseados nos Papiros ou Rolos do Mar Morto e, portanto, em averigua- ções e estudos apurados em relação aos mais antigos manuscritos do AT, atestam que a maioria dos salmos foi escrita por volta do ano 1000 a.C. e que não há um único salmo canônico que tenha sua composição datada depois do ano 300 a.C.

PROPÓSITOS

Qualquer tentativa de estudo, sistematização ou esboço do Livro dos Salmos deve ser geral e considerar dois aspectos fundamentais da sua constituição: o Saltério é oração, devoção e poesia, do começo ao fim. E a teologia que perpassa os Salmos deve ser analisada em sua essência con- fessional e doxológica; jamais de forma abstrata ou, de outro extremo, como um mero catecismo de doutrinas. Alguns pregadores, na tentativa de sistematizar a teologia inerente ao Saltério, transforma- ram obras de arte canônica, teológica e de louvor a Deus, em pílulas pragmáticas de doutrina e, não raro, propagaram muitas heresias. Portanto, cada salmo deve ser analisado e compreendido à luz da coletânea e, evidentemente, do todo das Escrituras, pois que uma verdade bíblica isolada deve corresponder e harmonizar-se à Verdade geral das Escrituras Sagradas.
Portanto, a essência teológica dos Salmos, o centro gravitacional da História e de toda a criação, seja a filosofia, a ética, a moral e a fé, ou ainda os mistérios da terra e dos céus, resume-se em Deus (Yahweh – Javé ou Iavé – o Senhor). É muito sintomático que o mais respeitado e imponente rei dos judeus tenha-se curvado, humildemente, diante do Rei dos reis, o Senhor dos senhores, clamando por sua misericórdia e reconhecendo a soberania, a justiça e o amor leal de Deus.

O Saltério é dividido em cinco livros, cada um dos quais encerrado com uma doxologia. Portanto, no estudo dos salmos, mais significativo que algum diagrama geral é a classificação deles, de acor- do com os assuntos tratados.

Cerca de metade dos salmos é de Davi ou de algum dos seus descendentes (davídicos) e, conforme seus títulos, vêm quase todos do período áureo de Israel, isto é, de aproximadamente 1.000 a.C. E, sem dúvida, alguns deles foram compostos mais tarde, até mesmo no tempo do cativeiro, como o salmo 137, por exemplo. A grande virtude dos cânticos espirituais, hinos e, portanto, dos salmos, é atingir – simultaneamente – espírito, razão e coração, provando que conhecimento intelectual não é o bastante: o âmago do espírito humano deve também ser tocado pelo poder da Graça remidora de Deus.

É importante frisar, especialmente para os leitores ocidentais, de língua portuguesa, que a poesia milenar hebraica não consiste em rima, nem obedece a um sistema métrico semelhante ao nosso, mas consiste principalmente em repetição de pensamento (idéias) numa cláusula paralela. Como neste exemplo: “Não nos trata segundo os nossos pecados nem nos retribui de acordo com as nossas culpas” (Sl 103.10). A simples observação a essa regra do paralelismo hebraico pode nos ajudar a interpretar palavras obscuras e, algumas vezes, certos enigmas bíblicos, ao lermos com atenção o paralelo mais claro. Ou seja, uma frase ajuda na compreensão da outra e do sentido geral da mensagem, pela associação ou esclarecimento da idéia central que está sendo comunicada. Outro recurso lingüístico observado com freqüência nos poemas hebraicos é a dramatização, assim como as figuras de linguagem (símiles e metáforas, em profusão). Davi escrevia como quem sentia o coração dos seus leitores e ouvintes. Quando interpretamos os salmos messiânicos, é importante ficarmos alertas para o fato de que, nesse caso, Davi também escreveu na primeira pessoa, ainda que exiba, com vívidos detalhes, as experiências do Mestre e Messias (Sl 22).

Cerca de metade dos salmos pode ser classificada como “orações de fé em tempos de crise”. Quantas pessoas atravessaram guerras, longos períodos de graves enfermidades, calamidades, depressões profundas, falências, desilusões, traições, amarguras terríveis, dor e medo, orando, com fé e persistência lendo os salmos bíblicos. Alguns desses salmos passaram para a História como ícones universais de devoção, piedade e confiança em Deus. É comum ver a Bíblia aberta em um desses salmos, como um símbolo de reverência e convite à leitura (Sl 23; 91 e 121).

Aproximadamente outros 40 salmos foram consagrados especialmente ao tema da adoração e louvor (Sl 100 e 103, por exemplo), os quais deveriam ter uma participação em nossas leituras e meditações diárias. Considerando que uma classificação detalhada dos salmos é uma tarefa extremamente difícil e, de certa forma, sempre imprecisa, o Comitê de Tradução da Bíblia King James deixa aqui apenas uma sugestão didática de reunião dos salmos, para estudo:

- Salmos do Homem Sábio (Sl 1; 15; 101; 112 e 113);
- Salmos Reais (Sl 2; 21; 45; 72; 110 e 132);
- Orações Pessoais (Sl 3,7,8);
- Louvor Salvífico (Sl 30,34);
- Louvores Comunitários (Sl 12; 44; 79);
- Louvor Pela Salvação da Comunidade (Sl 66; 75);
- Expressão de Fé (Sl 11; 15; 52);
- Hinos à Majestade de Deus (Sl 8; 19; 29; 65);
- Hinos à Soberania de Deus (Sl 47; 93 – 99);
- Cânticos de Sião (Sl 46; 48; 76; 84; 122; 126; 129 e 137);
- Cânticos de Peregrinação (Sl 120 – 134);
- Cânticos Litúrgicos (Sl 15; 24; 68);
- Cânticos Didáticos (Sl 1; 34; 37; 73; 112; 119; 128; 133);
- Salmos Penitenciais (tradicionalmente assim chamados, e que incluem partes dos salmos 38; 130 e 143, além dos conhecidos Sl 51 e 32);
- Salmos Vindicativos (Sl 69; 101; 137 e certas porções dos salmos 35; 55 e 58);
- Salmos Históricos (Sl 78; 81; 105 e 106);
- Salmos de Revelação (19; 119);
- Salmos Messiânicos (Sl 2; 8; 16; 22; 40; 41; 45; 68; 69; 89; 102; 109; 110; 118);
- Salmos Messiânicos Proféticos (2; 45; 110).

É importante notar as revelações feitas, por meio dos salmos, em relação ao Messias (Cristo, em grego). No Sl 45.6, o Cristo aparece como Deus; no salmo 110, Ele é o Rei-Sacerdote e Senhor de Davi; no salmo 2, Ele é o Filho de Deus, digno de todo louvor e adoração. Outros salmos anunciam: os sofrimentos do Messias (Sl 22), seu sacrifício vicário (Sl 40), e sua ressurreição miraculosa (Sl 16.10, 11). O salmo 89 nos apresenta o Cristo como Aquele que completará o pacto davídico (aliança), em cumprimento às esperanças garantidas pelo Senhor a Israel e a todo o povo de Deus.

DATA DA PRIMEIRA PUBLICAÇÃO

Ao questionarmos a data da publicação dos salmos, uma primeira pergunta se faz necessária: de qual salmo especificamente estamos falando? Porquanto o Saltério é composto de salmos que vão desde a época pré-exílica, passando por todo o tempo de cativeiro, até o pós-exílio. Como já vimos, o processo de descobrimento, seleção e formação da coletânea canônica dos salmos levou vários séculos, e foi concluído somente no final do século III a.C. Os salmos eram reverenciados e usados como “Livro de Orações” – o que significava, também, ensino, louvor e adoração – nos cultos realizados no templo de Zorobabel e Herodes, portanto, na reconstrução do templo de Salomão, ou no chamado “segundo templo”, bem como para uso litúrgico em todas as sinagogas (Lc 20.42; At 1.20). No primeiro século da era cristã, já era conhecido como o “Livro dos Salmos”, o que significa também todo o cânon do Antigo Testamento Hebraico ou “Escritos” (Lc 4.24-44).

Como já vimos, muitas coletâneas antecederam a formação final dos Salmos, e as primeiras coleções surgiram pelas mãos de Davi, na época dos primeiros cultos no templo construído por determinação de seu filho com Bate-Seba, o terceiro rei de Israel, Salomão (971 – 931 a.C.).
Considerando que metade de todo o Saltério é de autoria de Davi (ou davídicos), e que quase todos foram originados no período áureo de Israel e alguns até mais tarde, podemos datar as primeiras publicações dos Salmos por volta do ano 1000 a.C.

ESBOÇO GERAL DOS SALMOS

LIVRO I
- Como vencer os momentos de crise, angústia e depressão (Sl 1 – 41);
- Louvando e adorando ao Senhor Deus Yahweh (8; 24; 29; 33);
- Exaltando a majestade e o amor leal do Senhor (2; 21);
- Reverenciando a justiça misericordiosa e severa de Deus (1; 15);
- Confessando e abandonando o pecado (32);
- Crendo, absolutamente, na revelação do Senhor (19).

LIVRO II
- Como orar com fé, em meio às adversidades da vida (Sl 42 – 72);
- Louvando e adorando ao Senhor – Adonai (47; 48; 50; 65 – 68);
- Exaltando a majestade e o amor leal do Senhor (45; 72);
- Confessando e abandonando o pecado (51);
- Entregando nossos adversários à justiça divina (58 e 59).

LIVRO III
- Como manter a fé em Deus diante das aflições nacionais (Sl 73 – 89);
- Louvando e adorando a Deus Todo-Poderoso (75; 76);
- Observando o mover de Deus na História (78; 81);
- Analisando o amor leal de Deus por Sião e pelo Templo (84; 87);
- Suplicando a repreensão de Deus contra os ímpios (82).

LIVRO IV
- Como descobrir a força que Deus dá para vencer as crises (90 – 106);
- Cultivando uma fé inabalável diante dos obstáculos (90; 91; 94);
- Observando o mover de Deus na História (105; 106);
- Reconhecendo a justiça amorosa e certeira do Senhor (101).

LIVRO V
- Como manter plena confiança em Deus diante das provações (107 – 150);
- Crendo e exaltando a majestade soberana do Senhor (110; 132);
- Esperando pelo socorro do Altíssimo nas aflições nacionais (129; 137);
- Agarrando-se com toda a fé ao amor e à justiça de Deus (112; 116);
- Agarrando-se com todo amor e confiança à Palavra de Deus (119);
- Analisando o amor leal de Deus por Jerusalém (112);
- Encontrando consolo, paz e forças no Espírito de Deus (120 – 134);
- Dando sempre graças a Deus – Halel (113 – 118; 136 e 146 – 150).